Domínio Público e Pirataria: um dilema ético
Não há edição a favor do bem de todos. Mas há controle a favor do privilégio e enriquecimento de poucos. A produção de conhecimento patrocinada a fim de formar opinião e gerar demanda não é exclusividade da televisão, cinema e outros entretenimentos e formas de arte. Ela acontece também na produção de livros acadêmicos, como é o caso da literatura chamada científica gerada para atender aos interesses da indústria farmacêutica, e também alcança a internet. Então, podemos pensar: estamos ferrados e vulneráveis a toda sorte de manipulação! Sim, estamos. Até porquê, nem sempre sabemos qual conhecimento estamos buscando, onde buscá-lo ou a confiabilidade de sua fonte.
Mas também podemos ser disponíveis à sorte da casualidade, que conecta pessoas com afinidades de interesses e faz chegar, por exemplo, o caso Aaron até mim, que aliás, o desconhecia e me trouxe uma luz de reflexão, graças também ao que permitiu este vídeo estar disponível gratuitamente na internet. Quem dera ter todo o conhecimento já produzido pela humanidade em livros on-line, na íntegra, e não apenas em fragmentos, como de fato é o que ocorre, conforme disse Zigmunt Bauman num de seus trabalhos.
Um outro aspecto do conhecimento gratuito na internet, é ele prejudicar inúmeras profissões, inclusive banalizando o que antes seria conhecimento de especialistas pelo qual seria necessário pagar por eles. Pagar por quê? – Porque o profissional investiu anos estudando, experimentando e aperfeiçoando seu conhecimento, para ter, além de um motivo de existir, um meio de ‘‘ganhar a vida’’, sustentar a si próprio e à sua família. É o seu trabalho! O acesso ao conhecimento torna-se assim, em vez de maior oportunidade para todos, um tiro no pé de toda a sociedade na qual dependemos uns dos outros. Outro beco sem saída.
Numa escala holística e regida pela utópica ética visando o bem de todos, a intenção é boa. Na distopia, a consequência é severa e está mudando o modo de esperarmos algo bom do mundo, que ao cobrar que nos doemos, não devolve na mesma proporção. Como poderá a produção artística sobreviver sem que algum interesse a esteja patrocinando enquanto é produzida, ou mesmo depois, se ninguém quiser nem precisar pagar por ela? – Mais um beco sem saída.
A pirataria não é um termo a ser aplicado ao conteúdo de domínio público, seja qual for o critério que o tenha tornado como tal, pois se público é, público deve estar. A pirataria é roubo de produção intelectual sem que seu autor seja justamente recompensado pelo que investiu, merece e teria direito por ser reconhecido, valorizado e respeitado como proprietário intelectual de sua obra.
Em meu livro, defendo, por exemplo, que ideias não têm donos, por tratar-se de "entidades" disponíveis a qualquer um sintonizado para captá-las. Logo, eu estaria em contradição ao reivindicar qualquer direito sobre elas. Ao escrever meu livro, consultei inúmeras referências, citações, informações e conhecimentos que acessei livremente na internet. Considerando isso, todos nós estamos atualmente, de algum modo, ‘‘roubando’’um do outro para gerar um legado para todos. Porém, acredito no direito de ser remunerado pelo trabalho que tornou possível a ideia ser materializada, repassada e utilizada.
Ainda que espontaneamente um autor abra mão de seus direitos de autoria, um outro problema se cria quando alguém resolve apropriar-se dela, inclusive colocando em dúvida a legitimidade do verdadeiro autor, causando-lhe prejuízo intelectual ao mesmo tempo em que se apodera indevidamente da possibilidade de lucrar, e isto constitui um roubo, e portanto, um crime. Mais um beco sem saída, pois por mais que se façam leis para permitir, proibir ou penalizar, o beco está, na verdade, na moral de quem age e na ética da qual resultam consequências que em algum momento alcançará o coletivo. Na impossibilidade de mudar o mundo de modo que seja bom para todos, alguns se matarão, outros se renderão aos seus becos sem saída.
– Gutto Carrer Lima
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